quinta-feira, 27 de setembro de 2007
Testemunho do autor
Ao tomar conhecimento – tardiamente, como a muitos de entre nós aconteceu, por via do criminoso silêncio que sobre o cônsul Aristides de Sousa Mendes durante longos anos pesou – da extraordinária aventura de que ele foi protagonista, tive a imediata percepção de que os três dias angustiadamente vividos em Julho de 1940, entre Bordéus e a fronteira franco-espanhola, constituíam a substância de uma efabulação impregnada de fortíssima potencialidade dramaturgica. Não admira, pois, que haja sido impelido a construir, sobre ela, um texto de teatro. A exemplaridade da personagem, as contradições da sua humaníssima personalidade, o seu comportamento na situação-limite em que se viu obrigado a uma decisão de gravíssimas consequências – para ele, para os seus próximos e para milhares de seres humanos que nele viam a última (e a única) possibilidade de sobrevivência -, o enquadramento socio-político em que a sua opção decisiva foi tomada, tudo concorria para estimular a imaginação de um dramaturgo. Era impossível (foi impossível) resistir a esse impulso. Mas, por circunstâncias várias, fui adiando a escrita da peça. A ideia, contudo, ficara a germinar. E entre o Verão de 1995 e o fim desse ano a peça nasceu, foi publicada em Espanha antes de o ser no seu país natal, o país que tão injusto foi para este homem justo, e em 1999 Carlos Avilez encenou-a pela primeira vez, no Teatro Experimental de Cascais. Se alguma valia tem, deve-o exclusivamente à figura desse homem que ousei pôr em cena, forçando-o a transpor a fronteira entre a vida e o palco. O palco, que recria a vida, ficcionando-a – e por isso se misturam, na peça, homens e mulheres que realmente existiram com outros que são a simbiose das dezenas de milhares de seres humanos que Sousa Mendes salvou de uma morte atroz, e se ouvirão palavras que foram ditas alternando com outras que poderiam tê-lo sido. “A Desobediência”, assim lhe chamei, se outra valia não tiver, valerá como a simples homenagem de um simples dramaturgo português da segunda metade do século XX a um dos grandes portugueses deste século, que «ousou desobedecer num tempo em que se exigia dos homens obediência cega». E que esta homenagem tenha, agora, lugar numa sala de teatro que comemora 140 anos de gloriosa existência e a que, como autor e espectador, tão gratas e fundas recordações me prendem, eis o que constitui, para mim, redobrado motivo de orgulho e satisfação.
Luiz Francisco Rebello
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